Caro César, por acaso entrei em seu blog nesta manhã de domingo tão insólita e, lendo alguns artigos, acabei me deparando com o sugestivo título que se pretende tratar da diferença entre o ‘sociólogo’ e o ‘socialista’: Um Sociólogo não é necessariamente um Socialista (http://liberdadepoliticasocial.blogspot.com/2011/01/um-sociologo-nao-e-necessariamente-um.html). Percebi que na verdade nada mais é que uma crítica ao meu modo de pensar. Sendo assim, creio ter o direito de, ao menos, tentar expor alguns pontos de vista para clarear a questão sobre a diferença entre um sociólogo e um socialista e ao mesmo tempo me defender, proporcionando-me um direito de resposta neste mundo virtual.
Um dos meus livros preferidos chama-se Perspectivas Sociológicas, de Peter Berger. Os dois primeiros capítulos deste livro deixa bem claro o que é a sociologia: é uma tentativa de compreensão dos fenômenos sociais, e não uma ação. Quem tem ação na sociedade é um padre, um político, um professor, uma pessoa que tem um blog, etc.
Acho que para um aluno de primeiro ano de ciências sociais e que tenha especial afinidade com a sociologia é uma leitura muito edificante, essencial. Os primeiros anos de estudo devem ser voltados para a construção do conhecimento científico, da estrutura mental própria da sociologia. Neste sentido, creio ter interiorizado a estrutura científica própria do pensamento sociológico e, para citar outro livro que foi uma leitura do primeiro semestre do curso de ciências sociais, desenvolvi de maneira a ‘Imaginação Sociológica’ (salve Wright Mills).
Mas com o desenvolvimento intelectual e sociológico é justo perceber que a ciência possui interesse, e se tem um interesse dificilmente não visa uma ação. Peter Beger não é marxista, mas ele próprio afirma que o sociólogo nunca consegue se separar de seu objeto de estudo, ou seja, as relações humanas. O que podemos fazer é construir um discurso científico de neutralidade para não deixar transparecer o interesse em determinada pesquisa, estudo ou discussão.
Aqui você diz que eu sou socialista, e que você é um sociólogo por estar longe do senso comum. Deve ter se focado muito na apostila do primeiro ano para os professor de Sociologia do Estado de São Paulo, sobretudo no tema do olhar de estranhamento (desnaturalizar a realidade e fugir dos juízos de valor do senso comum, dos pré conceitos, para melhor compreender os fenômenos sociais). Esqueceu-se, contudo, de ver que você também tem uma ideologia, e é muito clara. Por exemplo, quando você versa alguns comentários sobre o pensamento de Zigmunt Bauman (e não Bausman como você escreve por duas vezes), surge a seguinte frase a cerca do seu pensamento, e é você quem dirá ou não se isto é ideologia: ‘Creio que a sociedade esta mudando, os valores estão mudando, existem novas formas de socialização e organização e a grande responsabilidade sobre isso é o capitalismo globalizado. Portanto devemos ter uma visão liberal, e a mais importante regra do capitalismo e o direito a propriedade, e para que aja o direito a propriedade, tem que haver um estado forte que garanta isso a todos’.
Você é um sociólogo, e não é neutro, é liberal. Afirmo aqui que também sou sociólogo, e não sou socialista, como você no artigo afirmou. Sou sociólogo e minha perspectiva parte da teoria crítica da sociedade, ou seja, o pensamento de Karl Marx. Primeiro vamos ao equívoco da sua concepção sobre o socialismo, depois versaremos sobre a teoria crítica da sociedade.
O socialismo em si não é tão crítico quanto muitos acreditam (e você mesmo afirma). Marx e Engels criticaram o socialismo, por ter vertentes utópicas, que nada mais são que burguesas. Em contrapartida propuseram o comunismo científico. Você afirma o seguinte sobre o socialista:
‘E um socialista é uma pessoa que crê em uma ideia utópica sobre o socialismo, uma sociedade governada e controlada pela sociedade, aonde tudo seria decidido pela sociedade, não haveria diferenças sociais, e sim a busca pela felicidade humana. Aonde todas as decisões de trabalho, educação, saúde, e etc. será a cargo do estado. Não haveria o mercado, toda a produção seria decidida pelo estado, aonde houvesse mais necessidade’.
Marx não diz que a sociedade deve ser governada pelo Estado, mas sim por pessoas organizadas de outra forma. O Estado é uma forma de organização política e social burguesa. Para ele o Estado deve ser suprimido, pois é o que possibilita a manutenção da sociedade divida em classes. Atuando de maneira ideológica, o Estado se pretende cuidar do bem comum, atuar em nome de toda a sociedade, mas o único interesse que defende é dos quem possuem propriedade privada, minoria em nossa sociedade. Ao defender a propriedade privada defendesse esta minoria.
O socialismo utópico não acaba com a propriedade privada, muito menos com o Estado. Nas diferentes formas históricas em que aconteceu, o socialismo utópico nada mais foi do que um meio de socialização de recursos burgueses, sem acabar a dominação burguesa, com a luta de classes.
Simplificando o pensamento de Marx, de uma maneira grotesca até, podemos dizer que para chegarmos ao comunismo (o que nunca houve na história moderna) devemos suprimir o Estado. E o Estado só acabará quando não mais existir classes, ou seja, acabando a divisão social em classes acaba a necessidade do Estado. No seu artigo sobre o Bauman você diz: “O que torna a sociedade uma sociedade organizada, é que as pessoas acreditam nas instituições, que são essas instituições como o Estado que torna a sociedade organizada, acreditando nas leis e punições da sociedade”.
O pensamento acima é só de um sociólogo ou de um sociólogo que tem um interesse determinado, uma visão de mundo ideológica? O Estado organiza a sociedade, mas que parte da sociedade? Toda? Ele pune, mas quem ele pune? Todos? O pensamento que se pretende neutro não visualiza estas contradições, mas o pensamento interessado, que quer captar as contradições da realidade consegue ver a complexidade do real, entender qual o sentido de cada instituição. Aqui chegamos ao ponto onde discutiremos brevemente a diferenciação entre a sociologia e a sociologia crítica.
Utilizarei aqui uma exposição do professor Duarcides, creio ter sido um professor relevante tanto para a minha formação quanto para a sua. Em sua tese intitulada Florestan Fernandes e a sociologia como crítica dos processos sociais (http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000431329), ele demonstra que o pensamento sociológico por si só é crítico, pela situação do contexto de seu surgimento, e no sentido de que tem uma postura que questiona o real, procura mostrar suas contradições e incongruências, etc. É uma ciência que se coloca contra uma explicação de mundo que não seja a partir do homem e para o homem. Nesta perspectiva a sociologia é crítica. Você se pretende crítico, e é, mas há limites para sua crítica, pois você que assumir um status de neutralidade.
Veja duas citações da tese do professor Duarcides a respeito da sociologia crítica. A primeira:
A teoria crítica, por sua vez, procura recuperar o componente humano, histórico, real e concreto que deve ser objeto das preocupações do cientista. Trata-se de desenvolver uma nova forma de razão e racionalidade que não mais separe sujeito e objeto, homem e natureza, corpo e alma. Ou seja, que procure resgatar os valores de liberdade, autonomia e, principalmente, emancipação, apregoados pelo Iluminismo. (página 33)
A segunda:
A teoria crítica quer, assim, segundo Horkheimer (1983) [que desenvolve a ideia de teoria crítica analisando o pensamento de Marx], explorar o que existe de real na vida social e que impede que vejamos os pressupostos e máscaras sob os quais se escondem a dominação, a exploração e o mesmo obscurantismo anterior. Compreender plena e verdadeiramente os mecanismos que comandam o mundo; a realidade subjacente a ideais defensáveis e aparentemente inofensivos. (página 34)
Karl Marx é um exemplo magnânimo de como os interesses e os julgamentos não comprometeram o rigor científico. Marx não é neutro, nunca se pretendeu. Mas seu pensamento é plenamente científico, profundo e complexo.
Nunca é tarde para deixarmos de perceber a ideologia que guia nossas ações, nossos valores, as posições sociais que defendemos, a classe social que pertencemos (ou queremos defender e pertencer), etc. Investigar a realidade em sua totalidade é a única forma que temos para perceber as contradições que temos e as contradições que enfrentamos (e enfrentaremos). Para finalizar reafirmo: sou sociólogo, tanto quanto você, mas minha vertente é crítica. A sua parece ser liberal.
Finalizamos com uma passagem de Ernesto Che Guevara, que não só atuou como escreveu (o que poucos conhecem). Creio ser significativo o pensamento deste autor para esta improfícua discussão:
Mas vocês, estudantes de todo o mundo, jamais se esqueçam de que por trás de cada técnica há alguém que a empunha e que esse alguém é uma sociedade e que se está a favor ou contra essa sociedade. Que no mundo há os que pensam que a exploração é boa e os que pensam que a exploração é ruim e que é preciso acabar com ela. E que mesmo quando não se fala de política em nenhum lugar, o homem político não poderenunciar a essa situação imanente à sua condição de ser humano. E que a técnica é uma arma e que quem sinta que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade, e antes, por isso, resgatar a sociedade, para que toda técnica sirva à maior quantidade possível de seres humanos, e para que possamos construir a sociedade do futuro – qualquer que seja seu nome -, essa sociedade com a qual sonhamos e a que chamamos, como lhe chamou o fundador do socialismo científico, ‘o comunismo’.
Abraços.
Fernando Matias