A Hora da Estrela é um romance escrito por Clarice Lispector, publicado em 1977. Clarice inicia um estilo feminista, com romances que rompem com a estabilidade da narrativa e são acentuados pelos fluxos de consciência, os quais permitem que o texto tenha um aspecto intimista, mas a capacidade da autora de investigar profundamente o psicológico das personagens que cria a distingue dos demais escritores de cunho intimista.
A história possuí características inovadores, desde a composição das personagens até o foco narrativo, a autora trabalha um enredo que vai se construindo aos poucos diante do leitor, há nesse “deixar-se levar” da narrativa um “ar” natural, mesmo que seja falso e totalmente manipulado pelo narrador onisciente e onipotente.
A narrativa começa por umas divagações do narrador, “Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei.”(LISPECTOR,1995:26). O narrador apresenta o motivo pelo qual vai contar a história da nordestina (personagem central), “Porque escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior” (LISPECTOR, 1995: 32), como se fosse muito mais uma confissão, “pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros” (LISPECTOR, 1995, p.36) e ao mesmo tempo tem a noção que é um escritor e produz literatura, o narrador também por várias vezes se compara com a vida e a situação da nordestina.
A protagonista nasceu no estado de Alagoas, os pais morreram quando ela tinha apenas dois anos de vida, mais tarde mudou-se para Maceió com a tia beata que a criou, a tia era muito rígida e batia muito em Macabéa, como chamava essa jovem. Já moça foi morar no Rio de Janeiro onde arrumou um emprego de datilógrafa, sua tia morrera e era sozinha.
Macabéa dividiu um quarto alugado com mais quatro moças, todas chamavam Maria, mas com elas não possuía amizade, o mais próximo de uma amizade que Macabéa conhecia era o seu relacionamento com Glória, colega de emprego, ainda assim Glória era muito distante de Macabéa, era mais viva, menos insignificante e tinha classe social.
A jovem nascera raquítica, era feia e não cheirava muito bem, pois pouco se lavava, vivia de economia, economizava comida, economizava alegria:
“Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era morrinhento.” (LISPECTOR, 1995:42)
Tinha uma inocência a ponto de acreditar em tudo, sua tia beata incutiu em sua cabeça uma moralidade um pouco exagerada, Macabéa tinha medo do pecado, do mal, do erro segundo uma visão cristã, no entanto não entendia muito bem, apenas acreditava que era assim, e não só no tocante a religião, a moça pensava que sua vida vazia e sem luxo era assim por que as coisas são simplesmente assim.
No decorrer dos dias e nessa mesma vida de inocente felicidade, a jovem conhece um rapaz e se apaixona, um nordestino como ela, só que vindo da Paraíba, o rapaz é ambicioso e malandro, quer ser reconhecido, sonha em ser popular, um deputado ou artista de cinema, assim como Macabéa, a moça queria ser estrela de cinema (daí o nome A Hora da Estrela), como a Marilyn Monroe. Eles namoram durante um tempo até que Olímpico a troca por Glória devido a seus interesses materiais.
A moça volta para sua vida solitária, mas não fica triste, para ela, segundo o narrador, a vida é assim mesmo. Depois do término do namoro, a moça volta-se um pouco mais para si, é aí que deseja ainda mais ser outra, ser Marilyn Monroe e compra um batom novo, cor vermelha, fato que evidência a influência dos filmes de Hollywood e a ascensão das mulheres enquanto símbolos sociais e sexuais:
“Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma idéia. Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória riu-se dela” (LISPECTOR, 1995:79)
Macabéa vai consultar uma cartomante para saber de sua sorte futura, como sugeriu Glória, ao entrar no estabelecimento da cartomante a senhora lhe dá esperanças de um futuro promissor, cheio de surpresas e felicidade, mas também é o momento no qual Macabéa perde a inocência, pois passa a saber, segundo os comentários da cartomante, que seu passado e seu presente eram horríveis, no entanto continuou entusiasmada com seu futuro. Quando a consulta acaba e a moça vai atravessar a rua, é atropelada por um carro de luxo, bate a cabeça, delira e morre.
A personagem central, uma mulher que levava uma vida tão difícil que acaba por reduzir essa existência humana a um simples existir de qualquer animal e até de certa forma insignificante, daí a grande pergunta que perpassa o romance: quem sou? E daí o medo da resposta, fato que nos remete a Graciliano Ramos, em Vidas Secas o personagem Fabiano não sabe se é homem, se é bicho.
A própria situação de Macabéa enquanto mulher é inovadora e uma forma de denuncia a esta repressão vivida pela mulher, mesmo não sendo o foco do romance. A questão feminina em A Hora da Estrela é diferente em comparação as literaturas anteriores, a marginalização de Macabéa é grande, pois, primeiramente, é mulher e por esse simples fato já implica em uma mão de obra barata e um papel social inflexível do ponto de vista da sociedade patriarcal. O segundo ponto, ela é pobre e nordestina, mais um aspecto que a torna um ser excluído.
Falar de uma pessoa com tais atributos físicos já mencionados aqui e ainda nesta situação social é um trabalho inovador, que procura um tom de denuncia da repressão vivida pela mulher, mas apesar dessa vida precária de Macabéa não implica em um futuro traçado e imutável como o destino que transferido a todas as personagens femininas dos romances na história da literatura.
Em uma perspectiva histórica, segundo a maioria das obras literárias, as mulheres tinham sua função social marcada, ou elas se casavam e viravam mães de família, ou seguiam a vida religiosa como freira, ou tomava os rumos noturnos como prostituta. Macabéa era diferente das tradicionais personagens, ela faz parte das mulheres que não tinham ninguém e mesmo assim não caiam na prostituição, ela se sustenta, embora sem luxo, sem os prazeres da vida, pode-se dizer que era de certa forma independente, mesmo que seja subjulgada por essa sociedade patriarcal que não valoriza o trabalho da mulher, isto é, a mulher que trabalha fora de casa e que na tem ninguém:
“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?” (LISPECTOR, 1995:28)
Olímpico de Jesus, o namorado de Macabéa, é um personagem que ocupa um papel importante, mas que fica dentro dos seus limites de coadjuvante, ele é um sertanejo de caráter valente, interesseiro e que busca uma certa delicadeza em meio a sua brutalidade natural, isso mostra que sua cultura e gênio de quem veio da seca e da vida dura não são bem encaixados no contexto urbano do Rio de Janeiro, mas mesmo assim o sujeito é ambicioso.
O namorado ocupa apenas a função de companheiro, de ser amado e não de um homem superior que ela dependesse para viver, apenas gostava dele, gostava de agradá-lo e não queria perde-lo.
Glória é uma personagem que tem vantagens sobre a protagonista, Glória tem uma classe social, tem pai e mãe, tem “carnes” e era carioca., essas vantagens chamaram a atenção de Olímpico. A colega de trabalho de Macabéa participa da história como alguém que a nordestina admira.
Existem ainda outros personagens, como seu Raimundo Silveira, As quatro Marias com as quais a protagonista morava, a Madama Carlota e o médico, no entanto, vamos nos ater a um outro muito importante, o que narra a história a se coloca como um personagem:
“Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade. (LISPECTOR, 1995:26-27)
O narrador se chama Rodrigo S. M., como mostra o trecho. Este conta uma história que não é dele, mas sim de uma personagem inventada, que poderia ser real, o narrador conhece inteiramente suas personagens, nasceu dele e o incomoda, principalmente aquela nordestina, a qual aos poucos vai se descobrindo no enredo.
Há muitas comparações entre Macabéa e o narrador, eles são até certo ponto parecidos na solidão e no sofrimento, mas o narrador divaga sobre o ato de escrever, como se o problema dele estivesse centrado na sua identidade enquanto autor de literatura, o que nos sugere uma crítica vinda de Clarice Lispector enquanto autora feminina e também sugere as duas histórias que se cruzam a do autor (narrador) e da moça protagonista, junto com o desafio de escrever o livro e escrever sobre si mesmo.
Esta obra vai se construir com as inovações e características singulares as quais mencionei, críticos literários comparam a produção literária de Clarice Lispector com as de Virginia Woolf e bem no começo de suas obras a questão feminina não foi logo debatida, outros aspectos, em um primeiro momento, chamaram mais atenção da crítica literária vigente. Segundo BOSI (2006, p. 452) “O uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência, a ruptura com o enredo factual têm sido constantes do seu estilo de narrar que, na sua manifesta heterodoxia, lembra o modelo batizado por Umberto Eco de “opera aperta”. Concordo com as palavras do crítico, pois os fluxos de consciência tornam as obras de Clarice Lispector intimistas e abertas, como uma confissão, quase escritas e lidas com uma naturalidade, dada por certa impulsão:
“Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:
– Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.” (LISPECTOR, 1995, p.86)
A Hora da Estrela retrata a percepção da realidade segundo as reflexões intimistas feitas pelo fluxo de consciência, para BAILEY (2006, p.11) “…o uso de metáforas e imagens inusitadas, a quebra da relação de causa e efeito, o uso da ambigüidade, o fluxo da consciência e o monólogo interior, os quais servem em sua obra para revelar a relação entre sujeito e realidade exterior mediante a percepção que esse sujeito tem da realidade.”
Por fim, A Hora da Estrela foi um dos últimos romances publicados da autora, marcado pelas características que Clarice Lispector carregou desde as primeiras obras, suas personagens femininas fortes, seu fluxo de consciência que abala a estrutura da narrativa tradicional e o jeito metafórico de detalhar o psicológico configuram suas obras, assim como, A Hora da Estrela não deixar de ser um bom exemplo disso.
Referências:
BAILEY, Cristina F. P. Clarice Lispector e a Crítica. In: BAILEY, Cristina F. P., ZILBERMAN, Regina. (Orgs). Clarice Lispector: Novos Aportes Críticos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2006, p. 7-23.
BOSI, Afredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.