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Vai passar: a transfiguração do poder no carnaval de Chico Buarque


A música ‘Vai passar’, de Chico Buarque de Holanda, foi lançada em 1984, fim da Ditadura Militar, e tal letra geralmente é associada a este período. Nós partimos da ideia de que só metaforicamente a letra se refere a Ditadura Militar, pois parece-nos claro tratar do surgimento do carnaval nos moldes que ele é mais conhecido hoje em nosso senso comum: o carnaval carioca, organizado por escolas que desenvolvem sambas-enredos. Diz a letra:

Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais
Que aqui sangraram pelos
nossos pés
Que aqui sambaram
nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa
história
Passagem desbotada na
memória
Das nossas novas
gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão
distraída
Sem perceber que era
subtraída
Em tenebrosas
transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo
continente
Levavam pedras feito
penitentes
Erguendo estranhas
catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma
alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos
barões famintos
O bloco dos napoleões
retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma
cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório
geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório
geral
Vai passar


É narrada uma história situada no passado: “No tempo, página infeliz da nossa história / passagem desbotada da memória / das nossas novas gerações”. A página infeliz da nossa história é a escravidão, já esquecida por muitos, mas que ainda deixa suas mazelas em nossa sociedade. Este é um fato que trouxe um reconhecimento vergonhoso para o Brasil, pois foi o último país independente no continente americano a abolir a escravidão.

O problema maior é que “Dormia a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / em tenebrosas transações”. Parece que Chico Buarque se refere à relação Portugal / Inglaterra, onde quem, literalmente, pagou os prejuízos da dívida portuguesa foi o Brasil. Daí ele dizer que nossa nação não percebia ser subtraída em tenebrosas transações: negociações obscuras que em nada nos beneficiou.

Enquanto isto “Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais”. Quem são os filhos desta terra que erraram cegos pelo continente? Poucos anos após a invasão ao Brasil os portugueses perceberam que o sistema de produção deles não era compatível com o modo de produção que os índios nativos possuíam. Os índios foram culpados de preguiçosos e estigmatizados por serem avessos ao trabalho. Os negros africanos constituem o terceiro povo de nossa formação, e foram estes que, andando cegos de um continente para outro(s), carregaram pedras feito penitentes. Antes de usar escravos no Brasil os portugueses já conheciam as ‘benesses’ que a escravidão acarreta para aqueles que estão na posição de dominadores. É como dizia Machado de Assis: “o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão”.  No Brasil os negros ergueram estranhas catedrais: trabalharam para a construção de uma cultura que não era a deles de modo forçado. Joaquim Nabuco analisou que em nossa sociedade “O negro construiu um país para outros; o negro construiu um país para brancos”. Mas, “um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”.

Ao fim da escravidão os negros que morravam no Rio de Janeiro ficaram marginalizados e, para garantirem sua sobrevivência física e social, organizaram-se nos morros, constituindo as favelas. Uma das formas artísticas mais conhecidas desse grupo social era o samba. Na década de 1920 este estilo musical serviu para que os morradores dos morros se organizassem para participar de uma festa no asfalto: o carnaval. No início do carnaval carioca trabalhadores como carpinteiros, pedreiros, costureiras e outros de profissões ‘simples’, pessoas negras, organizadas em escolas de samba, tomavam as ruas descendo os morros em direção a Praça Onze. Os brancos não participavam, pois os negros passavam o ano inteiro esperando os 4 dias de carnaval para ‘desfilarem’ e, também, havia o preconceito por não saberem sambar.

O carnaval carioca surge, então, como uma manifestação da cultura negra do morro e, mais que isto, como uma forma de auto-afirmação do negro. Simbolicamente nos 4 dias de carnaval os negros tinham o poder que passava o ano inteiro nas mãos dos brancos, e o espaço de concretização deste poder era no asfalto, não no morro, onde só moravam os marginalizados. Era a expressão da liberdade conquistada a amargo preço, da vida oprimida que levavam (levam) devido aos ‘brancos’, que tinham que deixar as ruas livres (deixar o espaço do poder livre) para ver negros brilharem. Aqueles que eram rotulados como desorganizados, baderneiros, atrasados, eram vistos de forma organizada, produzindo arte: música, fantasias, etc. O carnaval, simbolicamente, aparece como uma forma de transfiguração do poder das mãos dos brancos para os negros. Este era (não é mais) o sentido do carnaval carioca.

O fim da música se torna extremamente subjetiva e ruma para o absurdo: “palmas pra ala dos barões famintos, o bloco dos napoleões retintos e os pigmeus do boulevard”. Um barão possui um título que lhe confere prestígio social, poder, situação favorável. Não pode ser faminto, é algo incongruente. Napoleão foi o imperador francês que levou os ideais da Revolução Francesa para grande parte da Europa, povo de origem branca, mas retinto é algo de cor escura. É uma contradição. Pigmeus foram menosprezados pela civilização ocidental e expostos como representantes de uma cultura atrasada, primitiva. É um paradoxo, pois os boulevards representam o contrário disto: uma cultura altamente desenvolvida, civilizada.

Como explicar tais paradoxos? Chico Buarque utiliza a seguinte figura de linguagem: oxímoro. Sua função é harmonizar duas palavras contrastantes. É ela que possibilita a harmonia e o entendimento nas contradições acima expostas. Barões podem ser famintos no sentido de gananciosos, por não se contentarem com o poder que já possuem. Mas também, e aqui parece ser o sentido mais adequado, podem ser famintos por serem pessoas com fome, mas que tem o poder, tal qual um barão. Imperadores negros em uma sociedade como a brasileira torna-se algo impensável. Pigmeus andando em boulevards constituem imagens tão absurdas e contraditórias como as duas anteriores. Mas qual é o momento, onde, em que situação tudo isto não só é possível como plenamente realizável?

“O carnaval, o carnaval, o carnaval”. No carnaval os famintos, seres de pele escura, que são vistos como atrasados, chegam ao poder, travestidos de barões, de imperadores, organizados em alas, blocos, andam pelo ‘boulevard’, símbolo de imensa riqueza, poder e modernidade, para serem aplaudidos. O carnaval brasileiro é uma “alegria fugaz”, mas nele está (estava) presente a transfiguração do poder do grupo dominante para o dominado. É a cidade que para sua vida cotidiana no intuito de ver um grupo cantar. Tal canto têm significado e um sentido social: “Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade até o dia clarear”.

Aqui se mesclam a história dos negros, oprimidos, que fizeram do carnaval brasileiro um momento de expressão da liberdade obtida após anos de sofrimento e a sociedade brasileira do período da ditadura. Duas alegrias se imbricam, é a apoteoso de grupos que, antes excluídos, agora tem livre caminho para acesso ao poder. O carnaval em nossa sociedade, como dito acima, parece o sinônimo do poder transfigurado, da liberdade conquistada. O poder e a liberdade que se tornam ofegantes, epidêmicas.

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